quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Farol

 Era noite naquele pedaço do planeta terra. Um frio úmido tocava nossas peles trazendo à tona calafrios. As velas inflavam com o vento sudoeste, levando a embarcação adiante no seu tortuoso caminho marítimo. Tempestade vinha por aí. Cantávamos as canções que sabíamos para afugentar os maus espíritos e trazer um pouco de esperança à bordo.
O mar. Alguma coisa dentro de mim sempre me impulsionou a ele. Uma voz na minha cabeça dizia que nasci para estar aqui. Nunca o temi, de forma alguma. Respeite para ser respeitado, é o que meu pai dizia. Respeitei como a um segundo pai. Ele próprio, o oceano, me ensinou mais do que qualquer montanha poderia ensinar. Mais do que um punhado de terra, do que as corredeiras incessantes de um rio em curso. Um mistério é o que o mar significa. Um encanto, todavia um pesadelo. Uma benção e uma maldição. Quem é do mar, do mar não escapa. Seu balanço me ninava quando criança, acompanhando as pescarias do velho. Algo sempre me ligou a esse azul sem fim. Não seria minha morte diferente.
Desventuras me fizeram escolher as portas erradas. Cresci de barriga vazia, tendo que engolir minhas próprias palavras para alimentar-me. A fome passava pelo cansaço e não por um prato de comida. Depois da morte do velho tudo piorou. Não que nada disso justifique o caminho que tomei, nem de perto. Aprendi a viver do mar. Em troca oferecia meus esforços para ele. Dias e dias cercado de azul, nem sinal de pedra, terra, árvore ou o que quer que ande. Só via peixe, sol, estrela e azul. Quando chegava em terra é que me sentia enjoado, tonteiras. Onde estava o balanço? A terra é dura demais pra mim. Firme eu nunca fui. Sempre me identifiquei com a fluidez. Fluido assim, me vi sem emprego quando chegou a industria. Sardinha em lata. A terra levara de mim o meu sustento. A família aumentara e, junto com ela, também a fome. Também o desespero. Até que me veio esse homem. Elegante e eloquente, falava-me de como eu poderia fazer a fome ir embora. Transportar uma carga pesada de cocaína daqui pra lá, de lá pra cá. O que eu tinha a perder? Perdi.
Foi nesse dia. Como qualquer outro saí às duas da manha para fazer o transporte. Era eu e mais treze na tripulação. Tudo aconteceu tao de repente que já nem sei se o que conto é real ou não. A tormenta chegou e visibilidade era tremendamente escassa. Nao se via um palmo adiante. Um nevoeiro apareceu e o timoneiro não foi avisado sobre as rochas a bombordo. Um baque. Água entrava pelo casco. Outro baque. O barco quase partiu ao meio. Jogando todos pra fora. Ou pra dentro. Ali era cada um por si. Não havia como salvar meus companheiros. Não havia sequer como salvar a mim mesmo. Caí no tremulante azul já sem expectativas de sair dali.
Foi quando vi a luz do farol. A atração foi imediata. Um desejo intermitente de chegar ali me invadiu a alma. Nadei o máximo que pude. Nadei e nadei, mas não parecia sair de onde estava. Não me distanciava dos destroços nem um metro. Uma agonia inexplicavel me fazia entender que aquilo não teria fim. Não sabia bem o que se passava no meu corpo. Me sentia pesado e leve ao mesmo tempo. Como uma rocha boiando. Olhava ao redor e havia pedaços de madeira misturados a corpos mutilados. Olhava para mim mesmo e me via inteiro, apesar de imóvel. Mas a luz me persuadia a nadar, a buscá-la.
O farol não estava tao longe. Eu já não sabia ver a distancia da mesma maneira. Já não podia. Meu corpo imóvel paralisado. Não sei se era medo, ou o que, mas não podia me mexer. Me senti mais e mais angustiado. Um calafrio me percorreu a espinha. Aos poucos entendia que estava ali, morto. Isso era morrer? A impotência máxima. A alma desejando e o corpo não responde. Apenas bóia como um tronco velho jogado no mar. Mas o pensamento, a vontade ainda residiam aquele corpo defunto. Jazia minha matéria na bubuia, e a alma queria escapar daquela prisão flutuante. Não havia mais dor, não havia mais pranto. Havia apenas um frio inexplicavel, agora não mais úmido, um frio morto. A luz que vinha do farol, trazia uma incontrolavel gana de chegar até ali e esquentar novamente.
Um barulho vibrava. Era, acho, eu próprio. Um reverberar de alma. Não sabia de onde vinha, mas vinha de dentro. Vinha de mim. Foi quando me senti leve. Flutuei. Pairei. Quando me dei conta voava. E via tudo de cima. As tábuas, os corpos, eu mesmo boiando sem vida. A luz me chamava com certo magnetismo. Eu ia. Me sentia confortável. Enfim pude ver o pequeno farolete que emanava aquele chamariz luminoso. Não sei porque, como uma mariposa, girava em torno dele. Girava e me sentia bem. Percebi que não estava sozinho ali. Logo vi meus companheiros de tripulação. Todos ali girando também. E haviam tantos outros homens e mulheres. Pareciam todos sorrir. Então reparei que eu sorria e não conseguia parar de sorrir. Logo não havia mais desespero. Só havia essa estranha ciranda de almas em torno de um farol velho e carcomido pelo tempo, pelo vento. Um carrossel luminoso. E logo um comichão me veio à nuca. De fato não tinha mais nuca, mas era como se fosse. Então olhei para o oceano. E todos também olharam. Era outro navio. Dos grandes. Senti aquilo que eu era chorar. Em uníssono todos berravam gritavam para que o comandante desse meia volta, mas era inútil e ninguém podia ouvir a voz de almas penadas. O navio foi engolido pelas ondas e o choro aumentava ainda mais. Era apenas morte aquele dia.

Mas outros dias se passaram. Na verdade dias o bastante para entender que aquilo era mais do que normal, e assim passou também a agonia, o choro, o desespero. Quando era dia, eu viajava por todos os lugares dentro do limite azul do mar. À noite voltava ao farol para vigiar os vivos. E passou tanto tempo que não se pode contar. Vi meus filhos chorando na praia, gritando por mim. Vi meus filhos se tornando também como eu, e seus filhos, e os filhos dos seus filhos. Até que um dia eu nem sei mais quem era eu. Me dissolvi na água. Agora eu sou a água salgada de lágrimas mortas. Já não tenho essas lembranças que digo aqui. Não sei se são minhas de fato. Sinto que são, de alguma maneira. Mesmo que não seja mesmo eu, eu já nem existe. Acho que nunca existiu.

Pedro Vargas

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Chuva Galega

Pois aqui é que mora a chuva
Pertinho de mim, colada no meu quengo
aborrecido pelas gotas
Gasto tempo dentro de casa
onde também chove
Chove o tempo todo
Chuva de lado
Chuvisco
Temporal
Pé d'água

Setembro choveu
Outubro também
Me perco nos dias que o Sol aparece
Mas logo vai embora
E eu, pobre carioca,
Calço sempre havaianas
Embora me irrite voltar de pé molhado pra casa

Enquanto transito a rua
A rua transmite mais sinais de chuva
O cheiro inconfundivel do asfalto molhado
Persegue meus sentidos

Aqui a chuva mora
E me beija um beijo doce
Com gosto de amora
E o tempo todo a chuva chora
Me obriga a ouvir seus lamentos
Há tempos nao vejo tanta água
Mágoa da chuva chorona

Queria eu um guarda-chuvas
Pra guardá-la num canto qualquer
Sem beijos, sem choro, sem nada
Guardá-la e trancá-la

Até ter que regar as plantas novamente

Pedro Vargas

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

À tarde

Te esperei por aí,
Tu custou a chegar.
Era tanta demora
Que tardeei a tarde inteira
E tu nem teve
A idéia de dizer
Que  tardaria.

Passaria primeiro
Na padaria.
Um maço de cigarros,
Três baguetes,
Mortadela em fatias.
Café da manhã
Ao meio dia.

No meu tamanho ócio
Atentei às rachaduras
Donde crescia um talo
De pé de árvore.
Avistei tremendos detalhes.
Retalhos do cotidiano
De formigas, besouros,
Cigarrinhas.
Andei de seis patas,
Antenado a tudo.

Até que seres vieram a mim.
Me souberam abordar.
Teceram prosas maravilhosas.
Deixaram-me curioso.
Levaram-me a longe de ti,
Até que enfim.

Tu vieste?
Nem percebi.
Afinado com os diminutos
Me enfiei em cada buraco
Dos quais cantigas milenares,
Artes rupestres, artigos de magia,
Tanto se fuçava que se achava.

Fui ali e a luz me lavou.
Lavadeiras lúgubres
Puseram-se a me pousar
E você lá no mundo teu

Assim deixei de ser ateu.
Tornei-me, então, eu
Colega de fadas
E tantas outras criaturas esquisitas.

Pedro Vargas

terça-feira, 2 de julho de 2013

Olavo e a Lava

A lava eleva morros
Olavo não releva os murros
Na sua cara
De soslaio ensaia uma guinada
Um sorriso resvala da boca
Um brilho emana do ser
Tateia tonto a teia
Que tremula em sua frente
Trama complicada
Aplica em si uma dose de gim
Escapa esfarrapado pela rua
Uma moça nua, sua noite de nupcias

A lava eleva morros
Aos milhões e milhões de anos
Olavo estupra a moça
A seu bel prazer
No ato no meio da rua
Nua de roupas e dignidade
Nem idade tinha pra dar

A lava eleva morros
Queima florestas
Calcina seres animados
Esculturas de pedra
Surgem, mas não sofrem

Olavo não se arrepende
Queima, ainda, a moça
Assim sem menos nem mais
Ajusta o volume do rádio
E sai desembestado
No seu corvette 76
Deixa na rua
O galão de querosene
Um grito contido
E um canto soprano

Com a alma lavada
Olavo se livra da lava
Que cauterizava sem cautela
A calma cela
Que o continha
Dentro dos próprios
Desejos

Pedro Vargas

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Tomara que Caia

Impressionante como tudo aconteceu em uma fração de segundos. Tomava minha cerveja tranquilamente, rodeado de amigos a falar de assuntos irremediavelmente desinteressantes quando vi o peitinho lá, dando sopa no meio do bar. O tomara que caia por certo já havia caído, há não muito tempo, deixando descoberto o lindo peito. Um peito assim humilde, pequeno, a rodela rosada com um biquinho saliente, provável que pelo frio dessas noites de outono. Era um peito só, sortudo, que conseguira escapar daquela prisão cem por cento algodão.
O mamilo, polêmico, me encarava, jogando mensagens telepáticas em minha cabeça. “Viva a liberdade dos mamilos!” “Não à opressão mamilar!” “Mais investimentos contra o câncer de mama!”. Por certo, um mamilo revolucionário. “Deixe o peitinho respirar!” “Sutiã nunca mais!”. O peito conseguira a liberdade e agora tentava mostrar a todos o poder de um farol aceso.
O peito acendia em mim um desejo. Via, ali, uma boa oportunidade de lambê-lo. Meu corpo rapidamente se deu conta que aquele peito era uma delícia e eu, ético e concentrado, vivia um dilema mortal, um embate ideológico se travaria em meu encéfalo. Tenho que avisar a moça que o peitinho dela está de fora! Tenho que avisar a moça que o peitinho dela é lindo! Tenho que avisar a moça que o peitinho dela dá de mil a zero no peito murcho da minha mulher... 
O poder psíquico do peito cada vez mais se apoderava da minha consciência, controlando meus atos. Já pensava em como faria para agarrá-lo sem ser comprometido, aquele peito lindo tão leve, suave, inocente. O peito tinha poderes mágicos, lançava feitiços sobre o meu olhar, me deixava extasiado, pensando, travado, querendo agir, tomar uma decisão: A decisão errada. Mas já não podia controlar tanto desejo que o peitinho trazia, queria, ia até lá e daria uma lambida em homenagem à coragem que aquele peito tinha de se mostrar, se rebelar contra o controle da sociedade cristã ocidental, repressora da sexualidade! Um peito não pode ficar sozinho nessa luta! Um peito lindo desses precisa do auxílio do seu peito irmão! Onde está o seu companheiro? PEITOS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS! PEITOS ÀS ARMAS! PEITOS PEITOS PEI---
Saí do meu transe com um estalo forte e depois uma quentura no meu rosto. Um tapa na cara. A moça falava impropérios e me apontava o dedo na cara. Não ouvi nada do que ela falava. Olhei para os lados e todos me olhavam gargalhando.
Não me lembro nem da moça botando o peito de volta, nem da moça andando em minha direção. Não me lembro sequer do rosto da moça! Mas aquele peito é inesquecível como o tapa no meu rosto.  Os dedos marcados na minha cara como um carimbo e as gargalhadas. Catava no ar, calado, os cacos do meu rosto para que pudesse voltar à vida social. Bebi a cerveja na minha frente: Quente. A moça fora embora, Nunca mais a veria, nem nunca reconheceria. A não ser que o peito estivesse à mostra novamente. A moça não me interessa, só mesmo o peito. Foi amor à primeira vista. E tenho certeza de que o próprio peito também me queria.

Tem amores que a gente nunca esquece.

Pedro Vargas

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Corpo Violão

Carrego lamúrias debaixo do braço
Sob o corpo de violão

Degusto
Desgostos
e depois adoço a vida
Numa xícara de café

Des-figuras
Desfiguram
A poesia.

Na cabeça de um atormentado
Choviscos
São tempestades

À tarde
É tarde
Para tanta inconsistência
E tão pouca melodia

Pedro Vargas

terça-feira, 28 de maio de 2013

Temporal

O tempo passa
E observa
A selva de pedras
Pela janela
De um lotação
Lotado

Coitado,
Foi terceirizado!
Desempregado
Vende bala
Mas não se abala

Segura o balaústre
E, ilustre,
Propagandeia:
Balas sabor artrite
Guloseimas de lembrança
Pirulitos de saudade
Quebra-queixos
Choques de realidade

Preterido,
O tempo se treme
E teme
O frio de se tornar
Pretérito

Trocado, lamenta,
Por uns trocados
Passa maus bocados
Aos trapos
Num canto
Da Central do Brasil

Pedro Vargas

domingo, 26 de maio de 2013

Pinga

Nublou
A brisa trazia,
Fria, um frio.
Uns pingos
Ameaçavam
Cair do céu.
Pinga
Parecia ser
A melhor solução.
Pingava no copo
Mililitros
E um cheiro subia
Volátil.
Um frio dos diabos!
Uma cachaça
Esquenta as entranhas
Artimanhas
De quem manha
E manja
Mias de noites
Que de manhãs

Pedro Vargas

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Quero Quero


Quero QUero
Alça voo
Todo desengonçado.
Engraçado.
Se me engraço
Me desgraço
Pelo fato
Desse pássaro
Passear
E passear
E nem nunca
Se pousar

Me debruço
Nesse bicho
Curioso que só
De saber
Os seus sabores
Desabar
Nos seus enigmas
Debochar
Dos seus defeitos
Que, perfeitos,
Na garganta
Me dão nó

Mas se lhe acho
Lhe depeno
Lhe degolo
E descolo
E descubro
O rubro
Do teu rosto
Quando posto
Em sorriso

Ah, quero quero
Desgraçado
Não sei se te quero
Com o vento
Ou comigo
Quero tê-lo
Quero tato
Quero beijo
No teu bico

Pedro  Vargas

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Suor

Deitei na minha cama,
Um cheiro de Fernanda
Subiu o meu nariz.
Fui feliz,
Por um instante.
Mas logo vi:
Era só o cheiro

Para o meu desassossego
Não havia Fernanda.
Apenas a Lembrança
Louca
E um Riso frouxo
Escapando
Pelo canto
Da boca

Pedro Vargas

21:

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Pelos Ares

E tudo foi pelos ares outra vez.
Traçando o céu, como rouxinóis,
Pedaços de nós.

O ar pesa sobre a cidade.

Respira-se com dificuldade.
A névoa passeia densa,
Imensa.

Imerso,

A mercê da circunstância,
Vagueio

Imovel,

Perscrutando em olhares
Alheios
Os teus.
E tudo vai pelos ares outra vez.


Pedro Vargas