Era noite naquele pedaço do planeta
terra. Um frio úmido tocava nossas peles trazendo à tona
calafrios. As velas inflavam com o vento sudoeste, levando a
embarcação adiante no seu tortuoso caminho marítimo. Tempestade
vinha por aí. Cantávamos as canções que sabíamos para afugentar
os maus espíritos e trazer um pouco de esperança à bordo.
O mar. Alguma coisa dentro de mim
sempre me impulsionou a ele. Uma voz na minha cabeça dizia que nasci
para estar aqui. Nunca o temi, de forma alguma. Respeite para ser
respeitado, é o que meu pai dizia. Respeitei como a um segundo pai.
Ele próprio, o oceano, me ensinou mais do que qualquer montanha
poderia ensinar. Mais do que um punhado de terra, do que as
corredeiras incessantes de um rio em curso. Um mistério é o que o
mar significa. Um encanto, todavia um pesadelo. Uma benção e uma
maldição. Quem é do mar, do mar não escapa. Seu balanço me ninava
quando criança, acompanhando as pescarias do velho. Algo sempre me
ligou a esse azul sem fim. Não seria minha morte diferente.
Desventuras me fizeram escolher as
portas erradas. Cresci de barriga vazia, tendo que engolir minhas
próprias palavras para alimentar-me. A fome passava pelo cansaço e
não por um prato de comida. Depois da morte do velho tudo piorou. Não
que nada disso justifique o caminho que tomei, nem de perto. Aprendi
a viver do mar. Em troca oferecia meus esforços para ele. Dias e
dias cercado de azul, nem sinal de pedra, terra, árvore ou o que
quer que ande. Só via peixe, sol, estrela e azul. Quando chegava em
terra é que me sentia enjoado, tonteiras. Onde estava o balanço? A
terra é dura demais pra mim. Firme eu nunca fui. Sempre me
identifiquei com a fluidez. Fluido assim, me vi sem emprego quando
chegou a industria. Sardinha em lata. A terra levara de mim o meu
sustento. A família aumentara e, junto com ela, também a fome.
Também o desespero. Até que me veio esse homem. Elegante e
eloquente, falava-me de como eu poderia fazer a fome ir embora.
Transportar uma carga pesada de cocaína daqui pra lá, de lá pra
cá. O que eu tinha a perder? Perdi.
Foi nesse dia. Como qualquer outro saí
às duas da manha para fazer o transporte. Era eu e mais treze na
tripulação. Tudo aconteceu tao de repente que já nem sei se o que
conto é real ou não. A tormenta chegou e visibilidade era
tremendamente escassa. Nao se via um palmo adiante. Um nevoeiro
apareceu e o timoneiro não foi avisado sobre as rochas a bombordo. Um
baque. Água entrava pelo casco. Outro baque. O barco quase partiu ao
meio. Jogando todos pra fora. Ou pra dentro. Ali era cada um por si.
Não havia como salvar meus companheiros. Não havia sequer como salvar
a mim mesmo. Caí no tremulante azul já sem expectativas de sair
dali.
Foi quando vi a luz do farol. A
atração foi imediata. Um desejo intermitente de chegar ali me
invadiu a alma. Nadei o máximo que pude. Nadei e nadei, mas não
parecia sair de onde estava. Não me distanciava dos destroços nem um
metro. Uma agonia inexplicavel me fazia entender que aquilo não teria
fim. Não sabia bem o que se passava no meu corpo. Me sentia pesado e
leve ao mesmo tempo. Como uma rocha boiando. Olhava ao redor e havia
pedaços de madeira misturados a corpos mutilados. Olhava para mim
mesmo e me via inteiro, apesar de imóvel. Mas a luz me persuadia a
nadar, a buscá-la.
O farol não estava tao longe. Eu já
não sabia ver a distancia da mesma maneira. Já não podia. Meu corpo
imóvel paralisado. Não sei se era medo, ou o que, mas não podia me
mexer. Me senti mais e mais angustiado. Um calafrio me percorreu a
espinha. Aos poucos entendia que estava ali, morto. Isso era morrer?
A impotência máxima. A alma desejando e o corpo não responde.
Apenas bóia como um tronco velho jogado no mar. Mas o pensamento, a
vontade ainda residiam aquele corpo defunto. Jazia minha matéria na
bubuia, e a alma queria escapar daquela prisão flutuante. Não havia
mais dor, não havia mais pranto. Havia apenas um frio inexplicavel,
agora não mais úmido, um frio morto. A luz que vinha do farol,
trazia uma incontrolavel gana de chegar até ali e esquentar
novamente.
Um barulho vibrava. Era, acho, eu
próprio. Um reverberar de alma. Não sabia de onde vinha, mas vinha
de dentro. Vinha de mim. Foi quando me senti leve. Flutuei. Pairei.
Quando me dei conta voava. E via tudo de cima. As tábuas, os corpos,
eu mesmo boiando sem vida. A luz me chamava com certo magnetismo. Eu
ia. Me sentia confortável. Enfim pude ver o pequeno farolete que
emanava aquele chamariz luminoso. Não sei porque, como uma mariposa,
girava em torno dele. Girava e me sentia bem. Percebi que não estava
sozinho ali. Logo vi meus companheiros de tripulação. Todos ali
girando também. E haviam tantos outros homens e mulheres. Pareciam
todos sorrir. Então reparei que eu sorria e não conseguia parar de
sorrir. Logo não havia mais desespero. Só havia essa estranha
ciranda de almas em torno de um farol velho e carcomido pelo tempo,
pelo vento. Um carrossel luminoso. E logo um comichão me veio à
nuca. De fato não tinha mais nuca, mas era como se fosse. Então olhei
para o oceano. E todos também olharam. Era outro navio. Dos grandes.
Senti aquilo que eu era chorar. Em uníssono todos berravam gritavam
para que o comandante desse meia volta, mas era inútil e ninguém
podia ouvir a voz de almas penadas. O navio foi engolido pelas ondas
e o choro aumentava ainda mais. Era apenas morte aquele dia.
Mas outros dias se passaram. Na
verdade dias o bastante para entender que aquilo era mais do que
normal, e assim passou também a agonia, o choro, o desespero. Quando
era dia, eu viajava por todos os lugares dentro do limite azul do
mar. À noite voltava ao farol para vigiar os vivos. E passou tanto
tempo que não se pode contar. Vi meus filhos chorando na praia,
gritando por mim. Vi meus filhos se tornando também como eu, e seus
filhos, e os filhos dos seus filhos. Até que um dia eu nem sei mais
quem era eu. Me dissolvi na água. Agora eu sou a água salgada de
lágrimas mortas. Já não tenho essas lembranças que digo aqui. Não
sei se são minhas de fato. Sinto que são, de alguma maneira. Mesmo
que não seja mesmo eu, eu já nem existe. Acho que nunca existiu.
Pedro Vargas