terça-feira, 16 de março de 2010

Trocando as Pernas



Puto da vida, pegou uma garrafa de uísque, das tantas que havia no local, e saiu a esmo pela rua. Seus delírios, seus pesadelos, suas decisões erradas todas vieram à tona. Naquele momento tudo pareceu claro como água, ou uísque. Via o amor da sua vida sequer enxergá-lo, tratando-o como nada. Via-se comendo a amiga de trabalho por pura desilusão. Sentia-se traindo a menina por levá-la pra cama pensando em outra mulher. Ela que sempre gostara dele, ele que sempre fizera pouco caso dela. Na semana seguinte encontrou-a no trabalho toda feliz, alegre, sorridente, como se aquela noite tivesse sido algo como o início de um grande amor. Não era. Era apenas uma noite de puro prazer carnal e momentâneo. Queria que a menina entendesse, mas quando a olhava, via nos seus olhos aquele brilho de quem anda fazendo planos para pelo menos quatro anos dali pra frente. Vai ver o jantar à luz de velas foi exagero. Vai ver o vinho tinto importado foi exagero. Vai ver levá-la pra cama foi exagero. Mas isso não faria diferença nenhuma agora que o fato já havia ocorrido.

Saiu trocando as pernas pelas ruas de Ipanema com aquela garrafa, já meio vazia, nas mãos. Como poderia ter se apaixonado tão loucamente por aquela mulher? Como fazer para tê-la em seus braços? Milhões de planos passaram por sua cabeça durante o tempo da universidade. Sempre viajavam juntos nessa época. Eles dois, mais toda a sua turma. Coisas da juventude. Completamente compreensível para a época, afinal paixonites vêm e vão. Depois de formados nunca mais se viram e ele tomou seu rumo como professor numa escola mediana do Rio de Janeiro. Não ganhava o melhor salário do mundo, mas era funcionário público, trabalhando em prol dos seus alunos, sempre atiçando sua curiosidade, sempre vendo em cada uma das crianças que ensinava, o grande cientista que pensara em se tornar quando tinha aquele exato tamanho e aqueles exatos olhos enormes e concentrados. Era feliz, ou pelo menos assim se sentia. Não casara por opção. Fazia até certo sucesso com as mulheres, quando queria. Era um pouco desleixado com a aparência. Cabelos sem pentear e óculos tortos. Mas no fundo no fundo era feliz.

Quem poderia imaginar aquele fato daquele certo dia em que curiosamente decidiu passear por Copacabana para espairecer suas idéias confusas e encontrou nada mais nada menos do que a moça da graduação andando pela Atlântica sem compromisso algum? Talvez não fosse ela. Talvez fosse. Não custaria nada perguntar. Gritou seu nome umas duas vezes, sem muita esperança de que fosse ela. Ou com um desejo de que fosse ela, mas que não tivesse ouvido. É sempre preferível não ver como a pessoa que teve as mesmas oportunidades que você está muito melhor sucedida na vida por ser um pesquisador e você um professor. Chamou mais uma vez o seu nome só por desencargo de consciência. Foi então que ela virou, com um olhar de quem não está entendendo muita coisa até encontrar os olhos dele. Abriu aquele sorriso enorme e o homem lembrou na hora o porquê de ter se apaixonado por ela na juventude. Tão agradável olhar para ela novamente. Ver seus olhos, seu sorriso, sua graça, seu riso.

Mais agradável ainda foi quando se sentaram para tomar um café e conversar sobre a vida, sobre o caminho que cada um escolheu, relembrar os tempos de faculdade, das loucuras, dos professores, dos amigos e, porque não, dos amores. Nessa conversa ele acabou por declarar o seu amor platônico por ela naquela época. Ela deu uma risadinha nervosa e falou que gostara dele também. Por um milésimo de segundo, uma nova possibilidade do que poderia ter sido a sua vida passou pela cabeça. Um amor de verdade podia ter surgido naquela época para durar a vida toda. A julgar pelos seus trajes a moça tinha algum dinheiro e pela conversa isso se comprovava cada vez mais. Fez o mestrado assim que terminou o curso, doutorado na França, pós-doutorado na Alemanha. Um currículo de dar inveja. Imagina se fosse casado com ela agora. Talvez não fosse tão bom. Se sentia inveja dela naquele momento, imagina se fossem casados! Talvez não agüentasse a pressão de ter uma mulher mais poderosa do que ele em casa. Mas porque estava pensando nisso? Afinal, nada disso aconteceu! Eles não namoraram, não casaram, nada! Agora estavam ali tomando café por pura sorte do acaso e ele imaginando coisas! Mas por que não arriscar? Não tinha nada a perder. Resolveu perguntar o que ela faria naquela noite. Ele tinha que corrigir algumas provas, mas isso podia esperar. Ela disse que estava livre. Combinaram então de ir ao cinema ver o novo filme do Woody Allen, que uma amiga dela dissera ser fantástico. Foram ao cinema, beijaram-se, entrelaçaram-se e amaram-se em sua casa.

Entre um gole e outro pelo calçadão de Ipanema, um breve facho de sobriedade o fez ver como estava. Sentiu-se podre como carcaça de algum bicho atropelado na estrada. Vomitou ali mesmo, no calçadão. Pegou suas memórias e chorou copiosamente. Depois daquela noite a mulher nunca mais lhe dera notícias. Mas como um tornado que ataca uma cidade, ela foi embora deixando pra trás um grande estrago. Uma noite apenas foi o bastante para desestabilizá-lo daquela maneira. Quem era ela para fazer isso com ele? Como podia ser tão cruel? Um demônio sob uma forma angelical. Umas duas semanas depois, encontrou a colega de trabalho. Chamou para fazer alguma coisa. Precisava de companhia. Jantou, comeu, lambeu os dedos e esqueceu. Depois parou pra pensar no que fez. Como aquilo fora idêntico ao que a outra mulher fizera com ele. Idêntico! Um remorso sem igual se abateu sobre ele. Ao culpar a mulher por sua dor no coração, e ao fazer o mesmo com a amiga.

Em cacos o homem tentou recompor sua vida. Uns dois anos se passaram desde a série de episódios. Conhecera uma mulher interessante num clube de poesia que participava. Moça inteligente, bonita e carismática. Casaram-se e mudaram-se para botafogo, onde era mais perto da escola onde trabalhava. Seu círculo de amizades mudara. A vida era bem mais fácil a dois, diferente do que ele pensava (ou queria pensar) antigamente. Sua esposa pensava até em ter filhos. Quando imaginaria ele mesmo pai? Ele que tinha como profissão educar crianças, nunca pensara na possibilidade de ser pai de alguma. Isso o fez animar-se com a vida. Certa vez encontrou um velho amigo da faculdade no cinema. Logo trocaram telefones e passaram a se ver constantemente para um chope em Copacabana, depois do trabalho. Os velhos amigos logo se tornaram melhores amigos. Então contou-lhe sobre os episódios com a mulher da faculdade, a menina do trabalho e como isso tudo ainda afetava a sua cabeça apesar de toda a bonança em que vivia agora. Ele aconselhou um psicanalista. Segundo o amigo, esses caras ajudavam mesmo. A conversa logo tomou outros rumos mais alegres. Todavia, resolveu seguir o conselho: iria ao psicólogo no dia seguinte. Não foi. Nem no dia seguinte nem nunca. Sempre adiava essa decisão. No fundo no fundo era por medo. Tinha medo de o doutor chamá-lo de maluco. Besteira, mas acontece nas melhores famílias.

A moça enfim engravidara. Seria pai. Pulou de felicidade, gritou até a rouquidão quando soube da notícia. Seria pai! Pai! Como alguma notícia poderia ser melhor que essa? Foi só a partir daquele instante que ele se sentiu um homem completo, perfeito. Mas a vida é como nos filmes. Os momentos de maior alegria vêm na frente das piores tempestades. E não havia pior tempestade do que a que estava por vir. O amigo o convenceu de ir a um encontro de colegas da faculdade. Ele sequer sabia que essas coisas existiam. Para ele era coisa de americano, aquilo. Acabou indo. Um festão. Bebida a vontade, velhos amigos, velhas amigas. Uma noite regada a nostalgia e uísque 12 anos. Rapidamente embebedou-se. Não era muito forte pra bebida. Bêbado, encontrou aquela mulher. Aquela mulher que lhe tirava o sono com pesadelos morais. Aquela mulher que ele via enquanto comia a esposa. Aquela mulher que mastigava toda a sua sanidade no café da manhã. Aquela mulher que veio cumprimentá-lo falando que não esperava vê-lo ali. Aquela mulher que começou a conversar como foi uma loucura aquilo que fizeram no dia do cinema. Que foi só uma tentativa de lembrança boa da faculdade. Que veio pedir desculpas por não ter conversado com ele depois daquele dia. Que se sentia mal. Se sentia mal? E ele? Será que ela pensou nele em algum momento? Na sua solidão atroz que fez destruir os sonhos de outra mulher como num ciclo vicioso? Será que ela pensava no seu coração esmigalhado com salto alto por causa de uma mísera noite de sexo descompromissado?

Saiu de lá puto da vida empunhando uma garrafa de uísque. Cambaleou pelas pedras portuguesas de Ipanema pensando naquilo tudo. Vomitou no calçadão tal qual um mendigo sujo e trêbado. Sentiu-se torpe, podre por dentro. Matutou como um bêbado, o que realmente ele era naquele momento, como aquilo tudo era culpa daquela mulher diabólica. Desceu da calçada para a areia deserta, como de se esperar numa madrugada de sexta feira chuvosa. Bebeu o resto de uísque da garrafa de um gole só, tirou a toda a roupa e mergulhou no mar. No dia seguinte as manchetes dos jornais anunciavam um homem encontrado morto afogado na praia de Ipanema. Morto afogado Foi o que o legista falou. Morto afogado. Afogado em quê? Difícil definir.

Pedro Vargas

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