sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O mar

Já se via da porta os barulhos de mar que vinham da praia. Acordar sentindo o vento salgado no rosto, levantar da cama com cantos de pássaros. Saiu de casa pra pisar os pés no areal e admirar as ondas que vinham beijar seus pés descalços.

Coisa boa viver de mar. Pensava como é bela e poética a vida de marítimo. Que tudo é ver peixe, ver água, ver vento, ver areia.

Quando criança queria ser pirata, que pirata é homem honrado. Os homens do mar são homens honrados. Queria brandir espadas, cantar cantigas de pirata, fazer pilhagens, beber rum, se engraçar com mulheres da vida. A vida de pirata agrada a todas as crianças de verdade.

Queria ser capitão de navio, ser comandante. Comandante. O mais respeitado dos piratas das bandas do atlântico. Queria conhecer Oceanos, se perder no infinito azul. Diz que no alto mar o céu se confunde com a água e a pessoa fica meio maluca. Diz que tem monstro, lula gigante, baleia assassina. Diz que tempestade que derruba até a maior das embarcações. Mas se não houvesse perigo, não tinha diversão, não tinha aventura.

Ser pirata dos sete mares. Conhecido por cada língua que habita o mar. Por todos os portos que alguém possa falar alguma coisa, temeriam seu nome, Respeitariam suas histórias, se curvariam diante do grande pirata. Conheceriam todas as suas histórias, e depois da sua morte escreveriam um livro sobre suas façanhas.

E suas histórias seriam as mais maravilhosas possíveis. Coisa de Julio Verne nenhum botar defeito. Coisa de homem homem. De quem sabe o que viveu. Batalhas sangrentas, Monstros e tempestades. Tartarugas gigantes, porque sempre tem que haver tartarugas em histórias de piratas. Homens-peixe vindo do fundo do mar. Essa em particular é uma história maravilhosa que ele viveria. Uma raça de seres humanóides bizarros, com guelras e membranas entre os dedos. Homens-peixe de Atlântida. Atacariam porque o pirata roubara seus ídolos de ouro, coisa sagrada de homem-peixe. Homens honrados, os piratas. Honrados com a cobiça e a ânsia de poder. Mas não deixa de ser honra.

De garoto pirata, pra homem barqueiro não levaria muito. Não vivera todas as histórias maravilhosas que queria, mas não deixou de ser feliz. Sequer saíra de suas terras, mas fora homem de palavra, honrado como todo homem do mar deve ser. Casou-se com Matilde, que era uma negra muito da bonita. Dos cabelos crespos. Quando casaram era ainda moça. Mas era a mais linda dentre as mulheres da beira do cais. Casaram, mas não foi na igreja que não gostava disso. Casaram de casar. Papel passado e pronto. Uma festança que foi no dia. Era dia de São Pedro, padroeiro dos pescadores e dos homens do mar. Casaram, e foram felizes da maneira que são felizes os homens que vivem do mar.

E de mar ele viveu. De mar envelheceu. Matilde, a preta dos cabelos crespos não lhe deu filho algum. Acontece que ela tinha problemas de mulher. Não deu filho porque não podia. Uma dor que lhe doía a cada dia que via o marido olhando pro mar pensativo. Sabia que o homem sempre quisera um garoto. Um moleque que um dia quisesse ser pirata, viver nos sete mares, conhecer os portos do mundo todo. Os chineses que falam esquisito, os alemães malucos da cabeça. Queria ser pirata com o filho. Queria se endoidecer sem saber se era céu ou se era água o que via. Queria tudo isso de novo que infância é muito bom. E o mar só guarda a nossa infância. O mar é como uma mãe com um álbum de fotografias. Quando se posta na sua frente acontece algo de hipnose que faz nostalgia pairar pelo ar. E quando se mergulha fundo não tem jeito. O mar te pega de jeito.

Ele que fora o homem mais feliz ao cheirar a maresia, ao nadar nas águas claras, ao deitar-se nas areias. Quando via o mar se sentia um homem triste. Triste de as coisas terem passado tão depressa, de ser agora um velho sem forças pra pegar no leme, sem braços pra nadar pro fundo. O mar se tornou a lembrança vaga do que se fora. Do filho que não teve, das aventuras que não viveu, dos anos que passaram de repente, sem mais nem menos.

A mulher se culpava todos os dias pela falta de fertilidade. Se achava uma coisa podre, um objeto inútil. Um dia pegou a faca da cozinha e cortou a própria garganta só de desgosto. Puro desgosto de mulher incapaz de parir. De mulher inútil sem capacidade de gerar um filho. De dar à luz, de ter a prole que o homem tanto desejava.

O homem jogou o corpo de Matilde, a preta do cabelo crespo, no mar, porque assim devem ir as almas das pessoas marítimas. Ficou pensando, quem jogaria o seu corpo no mar se acaso viesse de morrer. Não tinha mais ninguém agora que Matilde se fora. Haveria de morrer ali mesmo, na praia. O mar não o levaria embora, as ondas não beijariam seu corpo defunto. Resolveu viver no alto mar.

Já se via da porta os barulhos de mar que vinham da praia. Acordar sentindo o vento salgado no rosto, levantar da cama com cantos de pássaros. Saiu de casa pra pisar os pés no areal e admirar as ondas que vinham beijar seus pés descalços.

As coisas já estavam no barco, mantimentos para uma semana. Água, comida, uma muda de roupa. Levantou a âncora, içou as velas e pegou o leme. Sempre em frente, se guiando pelo azul infinito. Deu adeus ao porto que crescera e pariu para o seu destino de homem do mar.

Quando já não se via mais cidade, nem morro, nem qualquer terra que fosse, o homem parou. Parou e ficou admirando o mais puro azul à sua volta. A mais pura beleza. O mar se confundindo com o céu. Um azul de deixar qualquer um maluco. Sorriu. Sorriu e chorou, como nunca chorara em anos. Era um sonho a imensidão azul. Era com estar dentro de algum recipiente que guardava todo o azul do mundo. Azul celeste, azul marinho. A noite chegou e as estrelas refletiam na água. A lua brilhando como nunca brilhara. O homem estava feliz. Como são felizes todos os homens do mar. Sorrindo se jogou na água e nadou pra longe do barco. Boiou na água esperando as ondas beijarem seu corpo. Já se sentia um morto. Um homem do mar não pode morrer na terra. Se ninguém há de jogar seu corpo no mar, ele mesmo jogaria. Não precisava mais viver, porque fora o homem mais feliz do mundo, como hão de ser todos os homens do mar.

No dia seguinte um grupo de pescadores encontra um barco de nome Tartaruga, a deriva no alto mar. Ninguém a bordo. Barco do Seu Otacílio, velho mais sábio que o porto já teve.


Pedro Vargas

Nenhum comentário: