terça-feira, 22 de setembro de 2015

Ser eia

E disse o destino que seria ela sereia
Tão menina, ainda.
Tanto acreditou que nadou, nadou
E nada
Pobrezinha
Cresceu descadeirada
De tanto nadar e não dar em nada
Com o corpo jogado na praia
Como areia, se viu que sorria
Que servia ser só moça
Que ser peixe
É salgado demasiado

Que ser, então?
Ei-la aí a pergunta
Que não cala.
Eis que a reles menina
Desatina a gargalhar
Ser ou não ser sereia?
Ou engolida por baleia?
Ou engolir uma bala?
Ou embalar uma valsa
No meio do fundo do mar?

"Serei eu o que quiser"
Disse ela em tom de desafio
"Se o destino disser: serás isso!
Aí é que serei justamento o contrário
Por puro gosto em ver
A cara de paspalho
Que o destino tem quando se irrita"

E foi nessa desdita que deixou pra trás
A menina, a sereia, ou ilusão qualquer
Para tornar-se mulher


domingo, 2 de agosto de 2015

HUMUS

Conheço homens de todos os tipos
tipos e credos, incrédulos, incontroláveis.
Há os homos, os héteros, os trans,
Homens transitam por diversos estados,
Territórios, traços, trejeitos,
Tamanha é a potêncialidade do seu ser.

Ser humano,
Não sei sê-lo sem pensar o que seria
Des-ser Humano,
Descer, ser menos, silêncio
No lugar da expressão.
São tantos os seres dentro de mim,
Não admito ser apenas humano,
Já que vivo desumanizado,
Demasiado o estímulo de negação.

Eu era homem, fui castrado.
Costuraram minha boca,
Calaram o meu falo.
Agora falam por mim,
Escolhem minha roupa,
Definem meu sotaque,
A música que ouço,
Mesma comida pronta,
A mesma programação.

Um ataque, um último, um íntimo.
A subjetividade, coitada,
Moldada pelo meio que vive
Convive com covardia,
Reproduz selvageria,

Humano é tudo que me falta
Seria humano se não fosse menos
Seria menos se não fosse humano
O que me distorce a humanidade
Também é, e principalmente isso,
O que me torna digno dela.

A Humanidade, idade das idéias,
Cidades, cinismos, sintomas,
Sentinelas, Sentimentos,
Centelhas, centímetros.
Sem tetos, Sementes,
Semântica, Semáforos

Seres sem sentido
Seresteiros, certos de si,
Seremos mesmo humildes
Para ser Humanos?


Pedro Vargas

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Madrugada

Quando você se vai
Logo chega a madrugada
E bate a porta, me seduz
Com luz de estrelas,
Maquiada de luar.

Perfumada com cachaça
Leva-me à praça mais próxima
Se aproxima e me beija sem parar.

Leva de mim a mocidade,
Lava-me o corpo da saudade,
Livra-me o peso das costas,
Ela gosta de me devorar.

E lá vai a madrugada
pelas ruas clareadas
do sol que avisa a manhã.

Parte sem dar comentário
Do seu largo itinerário,
Vai cumprir o fuso horário,
sai de forma repentina.

Livre e lúcida menina
Deixou minha companhia
Para amar outro poeta
Que reside na argentina.


Pedro Vargas

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Ode à Multiplicidade

Quem sois?
Quem cis
Quem trans
Forma um mundo
Mais diverso
Veste-se o verso
De saiote.
Pinta-se o lábio
Como os sábios.
Sou homem:
Só de vez em quando.
Sou mulher
Enquanto escrevo.
Sou Femenino,
Apesar do que transpareço.
Ai de quem conter-me
Num reles rótulo
Aprisionado.
Sou cis
Sou trans,
Tornado.
Tornando o seu
Medo infundado.
Afundando o binário,
Fundando o Ode
à Multiplicidade
De estados.
Transitando
Por caminhos
Inusitados.
Sou de Vênus
E de Marte.
Sou a Lua
E todos os Sóis.
E tu,
Quem sois?

Pedro Vargas

domingo, 8 de março de 2015

Da Fragmentação Amorosa

Não se fala nada de novo do amor
Discursos guardados, cheirando a naftalina,
Jazem no guarda roupas
(Prontos a vestir qualquer palavra
que se julgue digna)
Esperando a ordem meia boca de certos
Poetinhas, que surgem aos montes
Pelos becos da cidade

Já não me vale nem os poucos
Nem os tantos
Não vale a pena nenhuma palavra?

reconheço o amor em outros
Cacos de amor espalhados
Na imensidão demográfica
Da megalópole atroz

Mas é um tal poema de amor voando
aviõezinhos de papel teleguiado
Causa interferência no radar
Poético, patético, profetizador

Já não se encaixam adjetivos para o amor
Mas mesmo assim teimamos
Em amor isso
Amor aquilo outro
O amor está semânticamente fragmentado
(aquilo que eu falava antes sobre cacos)

Mas no fim do poema,
o verso dizia sempre qualquer coisa
sobre corações roubados, saltitantes
Ensanguentados, em carne viva
Inestimáveis, escandalizados
Vorazes, voluptuosos
Acometidos por uma sede macabra
Por poetinhas de meia boca
Que se repetem e se aliteram
Irredutivelmente
Apaixonados

Pedro Vargas

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Os Tetos

Os telhados
Olhados de cima
São retrato do trato
Que o teto recebe
Trasteja, Troveja
E a telha trepida
O Sol lá em cima
E a telha se aquece
É vermelha, a cerâmica
Do mesmo barro
Que, outrora, a nós
Moldara
Quanta maldade
Mudar tão bela e viva
Matéria
Pelo zinco ranzinza
Ou o amianto
Abjeto
Fico em prantos
Quando vejo teto cinza
Melhor, até, seria
Um teto preto

Pedro Vargas

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Queda Livre


Bem lá onde o sapo canta Até onde a vista alcança Enlaço a luz do sol Bebi da água sagrada Embriaguei minha alma Nas dunas do seu lençol E eu guardei aquele cheiro doce Daquele cheiro que você me trouxe Aquele dia tinha cor de céu E tinha dias que você não vinha E tinha coisas que você não via Era eu voando num avião de papel Voando raso Rasgando aurora Era um minuto Pareciam horas Chovia dentro E o Sol lá fora Era desbunde Desmanche Deslize Deserto Era certo te ver na multidão Era seco Era doce Era vinho era pássaro Caído do ninho Alçando vôo Na escuridão